Diário de Dmitriy Kalashnikov - 3ª Entrada:
Brooklyn, 02 de Janeiro de 1982
Querido diário,
Não sei nem por onde começar.
Acredito que precisarei aumentar a periodicidade das minhas anotações. Não sei quanto tempo ainda tenho. Nem sei o porquê ainda escrevo. Acho que instintivamente preciso deixar estes momentos registrados para, quem sabe, alguém entender tudo o que aconteceu.
Neste momento estou acompanhado de estranhos, aos quais estou ligado pelos fatos ocorridos. Estou em uma lanchonete de esquina, no Brooklyn, recuperando as energias com um café – vários, na realidade – e comendo panquecas com xarope de Maple. Nem parece que acabei de sair da confusão que acontecera poucas horas atrás.
Tudo começou quando cheguei para o primeiro dia de trabalho naquela boate ítalo americana. Até a virada do ano tudo estava tranquilo, tive que expulsar alguns baderneiros que tentavam entrar sem convite, mas não tive que usar de violência – meu porte físico intimida esses jovens.
Pouco após a virada do ano, ainda chegavam pessoas aos montes e eu permanecia firme, tentando desempenhar o meu melhor. A tranquilidade acabou quando chegou um homem. Ele era afrodescendente, com cabelos alisados pelos ombros, cavanhaque e bem desenhado e costeletas vastas, trajando roupas espalhafatosas e coloridas, com um chapéu inclinado para o lado e sapatos brancos. Seu nome não estava na lista de convidados e me vi na obrigação de barrar sua entrada. Ele não gostou e, de forma muito arrogante, tentou me persuadir demonstrando que era um homem poderoso – vim saber que se tratava de um cafetão chamado “Maciota” pouco tempo depois. Ele alegava ser amigo do Sr. Wilson, o dono da casa de entretenimento, exibindo um convite fora dos padrões da casa. O homem, acompanhado de seus seguranças, estava cada vez mais hostil e eu temia ter que usar de violência contra o mesmo – eu não queria machucar ninguém – até que, por sorte, o Sr. Wilson pessoalmente apareceu e liberou a entrada do mesmo. Não pude deixar de notar que um de seus seguranças, um mexicano, foi até o outro lado da rua.
Não muito tempo depois, ouvi barulho de confusão do lado de dentro da boate. Pedi ao Luca que assumisse meu posto e entrei em busca do Sr. Wilson. Ao adentrar o salão principal, comecei a reparar no entorno. Aos fundos havia um bar, com balcão de madeira nobre, prateleiras de bebidas presas à parede de espelho, dando a impressão de que o espaço era maior do que a realidade, bem como q quantidade de garrafas de bebidas. Ao lado esquerdo havia uma divisória de vidro espelhado que formava a sala “VIP” com apenas uma cortina em sua entrada. Durante a tarde eu soube que quem estava do outro lado tinha visão do salão. Nesse momento percebi que a confusão vinha da sala privativa, onde um homem de pele escura, e um lenço contornando sua cabeça terminando com um nó na testa, estava atacando o Sr. Wilson e seus convidados. Não pensei duas vezes e parti para o embate. Durante a confusão, troquei socos e empurrões com a figura, até então desconhecida, enquanto as pessoas tentavam sair da boate.
Quando nossa briga chegou até muito perto da porta principal o inimaginável aconteceu. Ao tentar atingir o agressor com um direto de direita, ele conseguiu esquivar do golpe e acertei em cheio o rosto de uma mulher que estava às suas costas. Somente isso seria o suficiente para me deixar em choque, mas o que realmente me deixou quase catatônico foi que tive a nítida impressão de que sua cabeça fora arrancada com meu soco.
Em meio ao desespero, tentei socorrer a mulher me abaixando. Nesse momento senti que o revólver 38, que me havia sido fornecido por Luca para minha função, foi removido do cós de minha calça. Tudo aconteceu muito rápido e, quando pude perceber o que estava acontecendo, o cafetão chamado Maciota estava com uma arma apontada para o agressor. Consegui recuperar agilmente minha arma, mas antes que pudesse tomar alguma atitude, ouvi tiros vindos do lado de fora e pessoas entrando na boate. Corri em direção ao bar ao fundo do salão principal, e consegui cobertura atrás do balcão onde, por sorte talvez, eu encontrei uma escopeta de cano duplo serrado calibre 12.
Não pensei duas vezes, peguei a escopeta e reparei que a caixa de munições estava ao seu lado. Encostei minhas costas no balcão, joguei as balas nos bolsos da calça e a carreguei com duas balas. Ofegante e preocupado, olhei para o espelho atrás do bar e vi a figura de quatro homens armados entrando e atirando contra as pessoas, trocando tiros com o cafetão e o homem com quem eu trocara golpes poucos momentos antes. Havia dois homens bem ao centro da sala e dois mais ao lado direito da imagem refletida. Engatilhei a arma, respirei fundo, segurei o fôlego e, guiado pelo reflexo no espelho, levantei fazendo mira nos homens ao centro. Atirei com a segurança que orgulharia meu pai. Primeiro acertei um tiro certeiro no homem que eu havia escolhido no reflexo que o tirou de combate, em seguida, acertei o segundo homem, o jogando para trás de um sofá com o impacto. O homem começou a se levantar lentamente de trás do sofá e somente tive tempo de saltar por sobre o balcão e me projetar de costas, escorregando pelo chão já lavado pelas bebidas. Aproveitei o embalo para com os dois pés chutar o sofá, espremendo o homem na parede. Ouvi ossos quebrando e vi uma mancha de sangue na parede.
Aturdido pela segunda cena dantesca da noite, não percebi que um dos homens remanescentes fazia mira contra minha cabeça. Блядь! – pensei comigo - Achei que seria meu fim, mas, surpreendentemente, o homem que havia agredido o Sr. Wilson saiu da sala privativa – eu nem havia percebido quando ele entrou- e atirou naquele que havia me rendido. Demos cabo dos invasores e continuamos ouvindo barulhos de movimentação e tiros do lado de fora quando, espantosamente, o inacreditável ocorreu.
Enquanto estávamos recuperando o fôlego a mulher decapitada se levantou e, eu juro, uma nova cabeça inflou de seu tronco enquanto a mesma começava a falar. Porém, antes que eu fizesse algo, o homem de lenço na cabeça descarregou sua arma contra a mulher, proferindo xingamentos e insultos. O cafetão pareceu estar indignado, aparentemente a mulher era uma de suas “funcionárias”, mas nada fez quando se deu conta da bizarrice da cena.
Antes que ocorresse um diálogo sobre a situação, a boate começou a ser invadida com brutalidade e tiros que quase nos acertaram. Sabendo de uma rota de fuga na sala privativa, posicionada logo abaixo de uma mesa do tipo caixote ao centro da sala, apenas gritei pelos dois que me auxiliaram naquele momento e corri em direção à sala. Estranhamente a mesa estava tombada e a passagem estava às nossas vistas – "Talvez o Sr. Wilson teria fugido!", pensei. Era um buraco no chão com um cano para a descida rápida – algo como a entrada para a batcaverna do seriado Batman, com Adam West no papel principal.
Chegamos em um túnel ao final da descida e o percorremos até encontrar sua saída. Junto a nós um senhor de idade, que estava entre os convidados do Sr. Wilson, que também nos acompanhava. Acredito que ele tenha se escondido e nos viu entrar. Ao sair, percebemos que estávamos nas docas e logo avistamos uma pessoa assoviando para nos chamar a atenção. Era o Sr. Wilson! Fiquei aliviado e fomos em sua direção em frente a um container com uma porta enquanto ele nos indicava para entrar.
O container era algo que, em meus 20 anos, jamais havia presenciado. Era algo digno de James Bond ou do seriado “O homem de um milhão de dólares”. Havia monitores e painéis de controle para todos os lados. A sala tinha uma mesa retangular e caixas claramente contendo armamentos. O Sr. Wilson sentou-se à ponta com o ar imponente de sempre, em contraste com sua pouca altura, sempre atento à movimentação nos monitores.
-Senhores, vocês estão vivos! Ah, mas que surpresa! –com uma risada de descrença ele nos felicitava enquanto apoiava os polegares em seus suspensórios.
Ficamos alguns minutos na sala e ele nos explicou que precisaríamos fugir do país o quanto antes. Durante a explicação, consegui pegar o nome de alguns dos meus “acompanhantes” na fuga. O homem de lenço na cabeça, com quem entrei em combate corporal, se chama Easy e, aparentemente, é um traficante de algo como drogas ou armas, não tenho certeza. O homem de mais idade, claramente um hippie de cabelos brancos e longos, foi chamado pela alcunha de Ravi.
Não demorou muito e o clima entre o Sr. Wilson e Easy esquentou. Easy sacou uma arma e por instinto todos estavam apontando suas armas para ele, inclusive eu mesmo.
Após trocas de farpas o Sr. Wilson me agradeceu e pagou, em espécie, mais até do que havíamos combinado pelo dia de trabalho. E assim continuou a explicação dizendo que não estávamos seguros a não ser com ele. Não demorou muito e começamos a sentir o container balançando e sendo içado para um navio, provavelmente.
Durante o trajeto ouvimos tiros, explosões e nosso container foi atingido caindo ao chão. Caímos nas docas e as portas do container abriram revelando um cenário de guerra. Homens de preto com algum tipo de capacete com lanternas atirando em nossa direção, rostos desconhecidos e Jesus, um dos capangas do cafetão chamado Maciota, que de alguma forma, nos encontrou.
Nos perdemos do Sr. Wilson enquanto fugíamos e, após quase morrer, estou aqui...esperando a decisão dos rapazes sobre o que fazer...Precisamos encontrar o Sr. Wilson.
До скорого,
С Новый годом!
Дмитрий Калашников
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